segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

trecho de "História da Sexualidade", de Michel Foucault

Num dia de 1867, um trabalhador agrícola da aldeia de Lapcourt, de espírito um tanto simples, empregado sazonalmente de um canto ao outro, alimentado aqui e acolá por um pouco de caridade e pelo pior dos trabalhos, morando em granjas ou estábulos, sofre uma denúncia: nas fímbrias de um roçado, havia obtido algumas carícias de uma menina, como já havia feito, como tinha visto fazer, como faziam em volta dele os moleques da aldeia; é que na orla do bosque ou nas valas da estrada que leva a Saint-Nicolas, brincava-se familiarmente de "leite coalhado". Ele foi portanto, delatado pelos pais ao prefeito da aldeia, denunciado pelo prefeito à polícia, por esta apresentado ao juiz, inculpado por este e submetido inicialmente a um médico, depois a dois outros peritos que, após elaborarem seu relatório, publicam-no. O que é importante nesta história? Seu caráter minúsculo: que o cotidiano da sexualidade al-deã, os ínfimos deleites campestres tenham podido tornar-se, a partir de um certo momento, o objeto não somente de uma intolerância coletiva, mas de uma ação judiciária, de uma intervenção médica, de um atento exame clínico e de toda uma elaboração teórica. O importante está em que dessa personagem comum, até então parte integrante da vida camponesa, se tenha tentado medir a caixa craniana, estudar a ossatura facial e inspecionar a anatomia, na busca de possíveis sinais de degenerescência; que o fizessem falar; que o interrogassem sobre seus pensamentos, gostos, hábitos, sensações, juízos. E que se decidisse, finalmente, isentando-o de qualquer delito, fazer dele um puro objeto de medicina e de saber — a ser enfurnado, até o fim de sua vida, no hospital de Maréville, mas a ser revelado ao mundo científico através uma análise detalhada. Pode-se ter por certo que, na mesma época, o professor primário de Lapcourt tenha ensinado às crianças da aldeia a policiar a linguagem e a não mais falar de todas essas coisas em alta voz. Mas, tratava-se, sem dúvida, de uma das condições para que as instituições de saber e de poder pudessem encobrir esse pequeno teatro do dia-a-dia com seu discurso solene.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Projeto-O pastor

Quem: Pastor Matheus e Daniel
O que: O pastor Matheus ensaiando para o culto
Quando: Antes do culto
Onde: Em um quarto de frente para um espelho
Como: De terno, gravata e segurando uma bíblia



Pastor: Sejam bem vindos, filhos de Deus. Que a paz do senhor Jesus esteja conosco.
Esta chegando o dia em que o fogo divino descerá para a terra, mas nos salmos 91; 7 diz:Mil cairão ao teu lado e dez mil, cairão á tua direita mas não cegará a ti.
Ontem depois do culto da salvação, absolutamente convertida e devota á 15 anos graças ao poder do Espírito santo, uma irmã da igreja muito querida veio me cumprimentar e o poder do espírito santo me revelou que essa irmã precisava de ajuda então lhe perguntei:
Irmã, a força do espírito santo me revelou que você esta passando por tempos difíceis e ela me respondeu aos prantos: Pastor Matheus, o inimigo conseguiu pegar meu filho Jorge.ele estava furtando dentro e fora para conseguir dinheiro e comprar entorpecentes, pastor.Estou desnorteada. E mais: ela teve que colocá-lo para fora de tua casa para que seus outros filhos não sejam influenciados... Eu lhe disse: Irmã, não perca sua fé o Diabo como um gavião ronda o caça o quanto puder pois ele sabe que um prazo, mas lembre se que em Atos 16; 31 diz assim: Crê no senhor Jesus Cristo e será salvo tu e a tua casa.Então pode vir Demônio, venha. Pode sobrevoar ao redor de mim, e da minha casa, mas a minha vida e a minha família mas para o teu azar nos estamos sob a nuvem do espírito santo em nome do altíssimo senhor Jesus cristo e da mesma esse filho infeliz que nesse momento esta a sua mercê será resgatado pelo pai divino em nome se Jesus...

(O celular do pastor toca, ele atende e Daniel aparece seminu com uma toalha:)

Pastor no celular: Oi, meu amor, onde você está?Trabalhando?Até agora? Sangue de Cristo tem poder. Á que horas você chega á sua casa?...22 e 30?...
Desculpa, não posso te ver hoje, pois daqui a pouco...

(Daniel começa á pertubá-lo)

Pastor no celular: Daqui a pouco tenho culto e em seguida tenho uma vigília... Não, linda será em outra igreja... Ah conseguiu?Graças a Deus...Já escolheu o vestido?...Cuidado... Só um minuto, minha cadela está carente.

(O pastor diz sussurrando para Daniel:) Por favor, estou falando com a minha
Noiva me dá um tempo.

(E volta a conversar:) O que eu dizia?Ah sim. Hoje são 13. Casamos dia 16... Eu estou calmo, amor... Claro que te amo... Já?... Ta certo... Então até Amanhã... Fica com Deus... Amem... Um beijo.

(O pastor desliga o celular se dirige irritado para Daniel:) 

Pastor: Você enlouqueceu?

Daniel: Você que é louca
Pastor: Eu já disse para você parar de me chamar no feminino
Daniel: Sabe a minha namorada, a Paula?
Pastor: O que ela tem?
Daniel: foi para o brejo
Pastor: Por quê?
Daniel: Por que serei dama de honra.
Pastor:...Você sabe que por mim você não iria o meu casamento, não é?...Mas como você é da família não tenho escolha, então se comporte por que você não me conhece.
Daniel: Você é um filho da puta, sabia?Se eu não te conheço, quem te conhece?
Pastor:...não sei... Deus, Jesus... Satanás... Mas você não
Daniel: Dia 16 você de casa com ela, mas logo depois estaremos juntinhos no inferno
Pastor: aí é que você se engana querido... Nós temos uma diferença... Eu conheço a palavra, você não por isso você tem uma chance. Mas antes disso serei um homem integro; casarei-me com uma mulher linda, teremos filhos lindos, uma casa linda e ainda tenho você
Daniel: Você é um filho da puta, sabia?
Pastor: Mas sou um filho da puta que você ama e não vive sem.Agora me da licença pois eu tenho um culto

(Daniel empurra o pastor para a cama, bloqueia a saída do quarto e diz:)

Daniel: Você vem até a minha casa, se diverte e vai embora assim?Você não vai sair daqui
Pastor: Daniel, por favor, eu tenho um culto não seja criança
Daniel: Se você sair daqui, alem de aparecer no seu culto pelado, mando fotos suas para sua noivinha assim ela desencana da pastora, não é?

(Der repente saem faíscas dos olhos do pastor e o, mesmo vai de encontro ao amante, agarra-o brutalmente em seu pescoço e diz:)

Pastor: Atreva se a se meter o meu caminho e eu terei mais um motivo de ir para o inferno, mas terei com muito gosto.

(O pastor arremessa Daniel para a cama e vai embora.)


(sujeito á mudanças)


Tudo esta dito e interpretado:

Árvore, chão, água, céu... A visão de uma criança é a mesma que Deus havia tido das coisas ao criá-las.
Os homens deturparam e as modificaram. Porém voltará ao seu estado de pureza todas as vezes que for olhada ou tocada por uma criança.

Darcy Penteado

sábado, 5 de novembro de 2011

Cinema Iris




Quando cheguei lá naquela noite o cartaz à entrada anunciava Kung Fu Contra os filhos do Karatê e Eu Dou o que Ela Gosta em sessão dupla. Dentro da sala de projeção o movimento era igual ao do hall: havia muitas pessoas sentadas, mas a maioria permanecia de pé, ou circulava pelos corredores. Ao tentar me acostumar com a escuridão, tateando com a ponta dos dedos na cortina que cobria a parede dos fundos, tive a primeira surpresa: por trás dela, sob o toque dos meus dedos, uma súbita movimentação indicava que ali, escondidas entre o tecido e a parede, havia duas, três, quatro, cinco, talvez uma dezena de pessoas, amontoadas umas contra as outras. Mais alguns passos pelo corredor escuro e pude ver, sob a luz avermelhada que indicava “Homens”, um homem fardado a esmagar contra a parede um vulto que gemia e praguejava palavras impublicáveis.

Mas era no banheiro que eu pretendia colher a minha preciosidade — a frase citada pelo bancário Alex. Para chegar lá, tinha que caminhar até o fim através do longo corredor, entre as filas de cadeiras e as paredes. Uma outra luz vermelha, lá no fundo, indicava a porta: “Homens”. Tentei abri-la, mas como se adivinhasse meu gesto, alguém do lado de dentro se antecipou — uma bicha alta e negra, que foi logo anunciando:

“Eu sou a porteira”.

Passei por ela, subi dois degraus que me pareceram o pórtico do próprio inferno, e no último deles divisei com esforço — através das ondas de fumaça de cigarros que o brilho amarelado da lâmpada de quarenta velas mal conseguia atravessar — o banheiro de homens do Cinema Íris.

Era apenas um corredor no qual se comprimiam umas trinta pessoas. Os três mictórios eram usados ao mesmo tempo por seis, oito, dez homens que se manipulavam friamente, que se olhavam e se apalpavam e se examinavam com uma tranqüilidade, uma curiosidade quase científica. Dos três banheiros, dois tinham as portas fechadas, e deles vinham estranhos ruídos — suspiros, lamentos, cantigas de ninar, roncos, uivos, gritos, imprecações. O terceiro, com a porta aberta, mas igualmente ocupado, era palco de uma cena que atraíra vários curiosos. A fumaça, os sons, a luz amarelada, o rosto impassível das pessoas — tudo isso me assustou, e eu já pensava em recuar, voltar ainda dos degraus e fugir dali. Mas a porteira, que acompanhava cada um dos meus passos, já se postara habilmente contra a porta, e quando me voltei ela disse numa voz sibilante:

“Pode entrar, meu bem. Não tenha medo.”

Fiz o que ela mandava. Avancei mais dois passos, enquanto os que tragavam tranqüilamente seus cigarros encostados às paredes me acompanhavam com seus olhares impassíveis. Foi aí que eu senti pela primeira vez o odor dos banheiros do Cinema Íris. Só sentira um cheiro igual uma vez, no necrotério do Recife. Era cheiro de cadáver: de morte. Na metade do caminho ainda parei, as pernas trêmulas, e olhei para trás, mas a porteira, sempre à entrada, cresceu de repente contra mim, seus olhos faiscaram num ódio súbito e ela perguntou:

“Como é? Você se decide ou não?”

Avancei. Ultrapassei a barreira esfumaçada e fétida das duas primeiras portas e cheguei, afinal, à roda de curiosos que, amontoados diante da última, assistiam ao espetáculo que eu agora também via enquanto me comprimia contra eles: lá dentro, as calças nos tornozelos, dois homens se roçavam um contra o outro, e o faziam furiosamente, quase com raiva, enquanto gemiam, gritavam, soltavam pragas e diziam palavrões, alheios á roda de curiosos que tinha os olhos fixos na cena. Enquanto a náusea, começava a crescer dentro de mim (ela viria mais tarde, para desespero da porteira, que me ajudaria a vomitar e me chamaria ternamente de debutante), eu tentava inutilmente desviar meus olhos da incrível cena. Mas meus olhos vagavam sem rumo, passavam pela privada que tinha uma parte das bordas quebrada, iam até a caixa de descarga, subiam pela parede, e no canto à esquerda, bem no alto — em letras maiores que aquelas usadas para escrever a atormentada literatura dos banheiros do cinema —, encontravam afinal a frase — que àquela altura a mim já não dizia nada: negras, enormes, escritas por uma mão firme e decidida, as letras informavam: “O Íris também é Brasil.”

Amor e trânsito

Me passa pela cabeça e depois desce pelo pescoço invadindo tudo que é lugar de mim. Me passa a idéia do amor vagante, do amor transeunte, trecheiro, andarilho.
Das ruas largas e calçadas mais largas ainda onde passeiam olhares que se cruzam e se descruzam, se cruzam e se descruzam, formando uma teia viva de momentos que se acendem e se apagam com a rapidez e brilho das cores dos faróis.
Há que se ter muito tempo para amar? Quanto?
Há que se ter uma casa arrojada e uma mesa muito bem arrumada para amar? Onde?
Há que se ter um encaixe perfeito, uma forma correta para amar? Qual?

Verbo intransitivo, quem não te quer?
E transitar até altas horas da madrugada a te buscar. Ou um arremedo. Ou um flerte. Ou um qualquer coisa.

Eduardo Bartolomeu

terça-feira, 1 de novembro de 2011

Vestido branco de renda

Guardei atrás do meu peito de aço
os seios fartos de uma mãe-áfrica
dos que acalmam o primeiro choro
e derramam leite pelo Paissandu

Arranquei com as minhas mãos de peão
os cabelos de uma estudante virgem
das que usam meia-arrastão branca
e ocupam os telefones de toda a cidade

Cobri com os meus pelos escuros
a boca de uma vizinha miúda
das que chamam Edith ou Gertrude
e clamam sussurros por todo o cortiço

Escondi nas minhas rugas de macho
os olhos de uma bacante profana
das que carregam o tirso entre as pernas
e cavalgam nas trevas da Rua Augusta

Eu tenho um vestido branco de renda
guardado na gaveta do meu armário
Eu tenho mil mulheres diferentes
presas dentro do meu espelho

Artur Mattar

Estudo de Cena sobre Glauco Mattoso.


Um cego (Glauco Mattoso) quase nu usa uma bengala e anda por um espaço composto por sapatos, tênis, sandálias, chinelos, coturnos e outros tipos de calçados... Próximo a ele existem algumas garrafas de bebida. Em alguma parte desse espaço, uma figura masculina permanece sentada em uma cadeira e carrega consigo certo ar de deboche e “dominação”.

Glauco Mattoso:
Aceita beber alguma coisa, rapaz?

Homem:
Pode ser... Que cachaça você tem ai?

Glauco:
Humm... Machinho, hem? Eu gosto... hehe. Tenho essa aqui: Xibungo de Minas
 (Vai até a cachaça e a serve em algum dos calçados, entrega para o homem... ele bebe)

Glauco:
Já bebeu?

Homem:
Já.

Glauco:
Quem bom... Então vem cá menino... Vem cá... (começa a andar na direção do homem e, esse começa a brincar de se esconder, os dois estabelecem esse jogo, de “vai e vem”) Cadê você rapaz? Hehe está se escondendo?  Quer brincar com um velho cego? Hehe olha que eu conheço esse lugar tão bem quanto eu conheço a escuridão.

 (o homem continua a se esconder, às vezes, soprando o ouvido de Glauco, o cutucando... até que Glauco encosta nele com a bengala e consegue se aproximar, o homem fica contra a parede, e Glauco vai chegando, chegando, chegando e chegando mais perto até, aos poucos, encostar-se nele e devagarzinho descer até seus pés)

Glauco:

Machismo é futebol e amor aos pés
São machos adorando pés de macho,
e nesse mundo mágico me acho
em meio aos fãs de algum camisa dez.
Invejo os massagistas dos Pelés
nos lúdicos momentos de relaxo,
servindo-lhes de chanca e de capacho,
levando a língua ali, do chão no rés.
É lógico que um cego como eu
não pode convocar o titular
dum time brasileiro ou europeu.
Contento-me em chupar o polegar
do pé de quem ainda não venceu
sequer a mais local preliminar.

(Glauco cessa o acalanto que fazia nos pés do Homem)


Glauco:

Gostou? (o homem vai responder, mas Glauco o corta subitamente) Não... Não precisa nem responder, sempre que eu pergunto para as pessoas se elas gostaram, as danadas se esquecem que estão diante de um cego e enchem se de formalidades para com os meus sonetos, afinal de contas, eu não posso ver a expressão no rosto delas... Mas ninguém sabe que isso não importa muito para mim...  No caso desse poema, a coisa é muito simples, se a pessoa gostou, ótimo! Fico Feliz... Sinto que existem outros no mundo como eu! E se não gostou... tsc tsc, caia entre nós... Essa pessoa não deve nunca ter assistido uma boa partido de futebol.
( O homem se afasta um pouco assustado, mas sem perder o ar de dominador e de deboche)

Glauco:
Não se assuste não garoto... Eu sou assim, meio errado, meio fodido... Aliás, Eu nasci fodido! E continuo devagarzinho me fodendo! Mas dessa vez eu gosto! Ahhhh eu gosto que me fodam... E que me fodam bem! Porque é muita sacanagem ser mau-fodido agora! Nasci com esse Glaucoma! Sou amante de pés, Viado, Sadomasô, Ex-hippie, ex-punk, Poeta marginal! E o pior de tudo... Bancário aposentado Por invalidez!
 Tudo que a ditadura militar mais gostava preso em um corpo!
(O homem continua se afastando)

Glauco:
Ô menino... Desculpe, fui muito grosseiro com você? Vem cá vem? Deixa eu te contar uma historinha para te acalmar? Vem... vá...
(O menino volta a ficar por perto, Glauco começa a contar a história e faz carinho no rapaz)

Glauco:
Uma vez... Saindo da universidade que eu cursava e andando pela Maria Antonia, eu vi uns meninos de uma universidade lá, meio inimiga da minha! Era o dia do trote deles. Um trote muito peculiar inclusive! Mandavam que todos os bichos lambessem seus sapatos... Eu achei aquilo incrível! Voltei para a casa, cortei a camiseta, raspei a cabeça e no dia seguinte eu estava lá! Lambendo os sapatos daqueles machos bem-nascidos. Aquela foi uma das experiências mais incríveis da minha vida. E sabe por quê? Porque eles achavam que estavam ganhando, mas na verdade, eu! Eu é que estava ganhando!  Eu é que queria perder.
(O homem vai se entregando de pouquinho e pouquinho para o carinho de Glauco, os dois se beijam e se encostam... Glauco levanta, se vira em direção a platéia)

Glauco:
Perguntei ao cego, o que você é?  Ele disse, sou um prego no escuro... se bater em mim, eu furo.

Fim da cena.